- Bruno Alves Pinto

- 4 de nov.
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O Retrato de Dorian Gray Oscar Wilde
Texto Original Completo (em domínio público)
Capítulo V
“Mamãe, mamãe, estou tão feliz!”, sussurrou a garota, enterrando o rosto no colo da mulher desbotada e cansada que, de costas para a luz estridente e intrometida, estava sentada na única poltrona que havia na sala de estar sombria delas. “Estou tão feliz!”, repetiu, “e você também tem de estar!”
A sra. Vane estremeceu e pousou as mãos finas, branqueadas com bismuto, na cabeça da filha. “Feliz!”, ecoou, “só fico feliz, Sibyl, quando vejo você representar. Você não deve pensar em nada além da sua atuação. O sr. Isaacs tem sido muito bom para nós, e nós lhe devemos dinheiro.”
A garota ergueu o rosto e fez um biquinho. “Dinheiro, mamãe?”, gritou, “o que importa o dinheiro? O amor vale mais do que dinheiro.”
“O sr. Isaacs nos adiantou cinquenta libras para saldarmos as dívidas e conseguir um enxoval decente para James. Você não deve esquecer isso, Sibyl. Cinquenta libras é uma quantia muito grande. O sr. Isaacs tem sido extremamente atencioso.”
“Ele não é um cavalheiro, mamãe, e eu detesto o jeito como fala comigo”, disse a garota, levantando-se e indo até a janela.
“Não sei como poderíamos nos virar sem ele”, respondeu a mulher mais velha, queixosa.
Sibyl Vane sacudiu a cabeça e riu. “Não precisamos mais dele, mamãe. Agora é o Príncipe Encantado quem governa a nossa vida.” Então ela parou. Uma rosa estremeceu em seu sangue e sombreou-lhe as faces. Um sopro rápido separou as pétalas de seus lábios. Tremiam. Algum vento sul de paixão varreu-a e agitou os delicados franzidos do vestido. “Eu o amo”, disse simplesmente.
“Criança tola! criança tola!”, foi a frase papagaiada que veio em resposta. O agitar de dedos tortos, com joias falsas, dava um ar grotesco às palavras.
A garota riu de novo. A alegria de um pássaro enjaulado estava em sua voz. Seus olhos captaram a melodia e a refletiram em fulgor, depois se fecharam por um instante, como para esconder o segredo. Quando se abriram, havia passado por eles a névoa de um sonho.
Uma sabedoria de lábios finos falou do assento gasto, insinuou prudência, citou daquele livro da covardia cujo autor usurpa o nome de bom senso. Ela não ouviu. Era livre em sua prisão de paixão. Seu príncipe, o Príncipe Encantado, estava com ela. Chamara a memória para refazê-lo. Enviara a alma em busca dele, e ela o trouxera de volta. O beijo dele ardia outra vez em sua boca. Suas pálpebras estavam quentes do hálito dele.
Então a sabedoria mudou de método e falou de espreita e descoberta. Esse jovem poderia ser rico. Se fosse, casamento se deveria considerar. Contra a concha de sua orelha quebravam-se ondas de astúcia mundana. As flechas da esperteza passavam zunindo. Ela via os lábios finos movendo-se e sorria.
De repente sentiu necessidade de falar. O silêncio palavroso a inquietava. “Mamãe, mamãe”, exclamou, “por que ele me ama tanto? Eu sei por que eu o amo. Eu o amo porque ele é como o próprio amor deveria ser. Mas o que é que ele vê em mim? Não sou digna dele. E, no entanto — por quê, não sei dizer — embora me sinta tão abaixo dele, não me sinto humilde. Sinto-me orgulhosa, terrivelmente orgulhosa. Mamãe, você amou meu pai como eu amo o Príncipe Encantado?”
A mulher mais velha empalideceu sob o pó grosseiro que lhe besuntava as faces, e os lábios secos se contraíram num espasmo de dor. Sibyl correu até ela, lançou-lhe os braços ao pescoço e a beijou. “Perdoe-me, mamãe. Eu sei que dói falar do nosso pai. Mas só dói porque você o amou tanto. Não fique tão triste. Estou tão feliz hoje quanto você esteve há vinte anos. Ah! deixe-me ser feliz para sempre!”
“Minha filha, você é jovem demais para pensar em se apaixonar. Além do mais, o que você sabe desse moço? Você nem sabe o nome dele. É tudo muito inconveniente e, de fato, quando James está indo para a Austrália e eu tenho tanto em que pensar, devo dizer que você devia ter mostrado mais consideração. No entanto, como disse antes, se ele é rico...”
“Ah! mamãe, mamãe, deixe-me ser feliz!”
A sra. Vane lançou-lhe um olhar e, com um daqueles gestos teatrais falsos que tantas vezes se tornam uma segunda natureza para quem vive de palco, apertou-a nos braços. Nesse momento, a porta se abriu e um rapaz de cabelos castanhos, revoltos, entrou no cômodo. Tinha o corpo atarracado, e mãos e pés grandes e um tanto desajeitados nos movimentos. Não era tão bem-apessoado quanto a irmã. Mal se adivinharia o estreito grau de parentesco entre ambos. A sra. Vane cravou os olhos nele e intensificou o sorriso. Elevou mentalmente o filho à dignidade de plateia. Tinha certeza de que o tableau era interessante.
“Você podia guardar alguns dos seus beijos para mim, Sibyl, acho”, disse o rapaz, num resmungo bem-humorado.
“Ah! mas você não gosta de beijo, Jim”, exclamou ela. “Você é um urso velho horrível.” E atravessou a sala correndo e o abraçou.
James Vane fitou o rosto da irmã com ternura. “Quero que você saia para passear comigo, Sibyl. Duvido que eu volte a ver essa Londres horrível. E, francamente, nem quero.”
“Meu filho, não diga coisas tão terríveis”, murmurou a sra. Vane, pegando um vistoso vestido teatral, com um suspiro, e começando a remendá-lo. Sentiu-se um pouco desapontada por ele não ter se juntado ao grupo. Teria aumentado o pitoresco teatral da situação.
“Por que não, mamãe? Eu falo sério.”
“Você me magoa, meu filho. Espero que volte da Austrália numa posição de abastança. Creio que não há sociedade de espécie alguma nas Colônias — nada que eu chamaria de sociedade — então, quando tiver feito fortuna, você deve voltar e afirmar-se em Londres.”
“Sociedade!”, resmungou o rapaz. “Não quero saber nada disso. Gostaria de ganhar algum dinheiro para tirar você e Sibyl do palco. Eu odeio isso.”
“Ah, Jim!”, disse Sibyl, rindo, “que maldade a sua! Mas você vai mesmo passear comigo? Vai ser bom! Eu tinha medo de que fosse se despedir de alguns dos seus amigos — do Tom Hardy, que te deu aquele cachimbo horrendo, ou do Ned Langton, que tira sarro de você por fumá-lo. É muita doçura sua me dar a sua última tarde. Para onde vamos? Vamos ao parque.”
“Estou muito malvestido”, respondeu ele, franzindo a testa. “Só gente chique vai ao parque.”
“Bobagem, Jim”, sussurrou ela, alisando a manga do casaco dele.
Ele hesitou um instante. “Está bem”, disse por fim, “mas não demore para se vestir.” Ela dançou porta afora. Dava para ouvi-la cantando enquanto subia a escada correndo. Seus pezinhos palmilhavam lá em cima.
Ele andou pela sala de um lado a outro duas ou três vezes. Depois voltou-se para a figura imóvel na poltrona. “Mamãe, minhas coisas estão prontas?”, perguntou.
“Prontíssimas, James”, respondeu ela, mantendo os olhos no trabalho. Havia alguns meses sentia-se desconfortável quando ficava a sós com esse filho rude e severo. Sua natureza rasa e secreta se perturbava quando seus olhares se encontravam. Costumava se perguntar se ele suspeitava de algo. O silêncio, pois ele nada mais dizia, tornou-se para ela intolerável. Começou a reclamar. As mulheres se defendem atacando, assim como atacam por meio de súbitas e estranhas rendições. “Espero que você fique satisfeito, James, com a vida no mar”, disse. “Você precisa lembrar que foi escolha sua. Poderia ter entrado para um escritório de advogado. Advogados são uma classe muito respeitável e, no interior, muitas vezes jantam com as melhores famílias.”
“Eu odeio escritórios e odeio escriturários”, respondeu. “Mas você tem toda razão. Escolhi minha própria vida. Só digo isto: vigie a Sibyl. Não a deixe sofrer nenhum mal. Mamãe, você tem de cuidar dela.”
“James, você fala de um jeito muito estranho. É claro que eu cuido da Sibyl.”
“Ouvi dizer que um cavalheiro vai todas as noites ao teatro e vai aos bastidores falar com ela. Isso está certo? O que tem a dizer sobre isso?”
“Você está falando de coisas que não entende, James. Na profissão estamos acostumados a receber um grande número de atenções muito lisonjeiras. Eu mesma costumava receber muitos buquês, certa vez. Foi quando a arte de representar era realmente compreendida. Quanto à Sibyl, não sei no momento se o apego dela é sério ou não. Mas não há dúvida de que o jovem em questão é um perfeito cavalheiro. Ele é sempre muito educado comigo. Além disso, parece ser rico, e as flores que manda são lindas.”
“Mas você não sabe o nome dele”, disse o rapaz, asperamente.
“Não”, respondeu a mãe, com expressão plácida no rosto. “Ele ainda não revelou o nome verdadeiro. Acho bastante romântico da parte dele. Provavelmente é membro da aristocracia.”
James Vane mordeu o lábio. “Cuide da Sibyl, mamãe”, exclamou, “cuide dela.”
“Meu filho, você me aflige muito. Sibyl está sempre sob meus cuidados especiais. Claro que, se esse cavalheiro é abastado, não há razão para que ela não firme uma aliança com ele. Espero que seja da aristocracia. Ele tem toda a aparência disso, devo dizer. Poderia ser um casamento brilhantíssimo para Sibyl. Fariam um casal encantador. A beleza dele é realmente notável; todo mundo repara.”
O rapaz murmurou algo consigo mesmo e tamborilou no vidro da janela com os dedos grossos. Estava prestes a dizer algo quando a porta se abriu e Sibyl entrou correndo.
“Como vocês estão sérios!”, exclamou. “O que aconteceu?”
“Nada”, respondeu ele. “Suponho que às vezes a gente tem de ser sério. Adeus, mamãe; vou jantar às cinco. Está tudo arrumado, menos minhas camisas, então não precisa se incomodar.”
“Adeus, meu filho”, respondeu ela com um aceno de solenidade forçada.
Estava extremamente aborrecida com o tom que ele adotara com ela, e havia algo no olhar dele que lhe causara medo.
“Beija-me, mamãe”, disse a garota. Seus lábios de flor tocaram a face enrugada e aqueceram seu gelo.
“Minha filha! minha filha!”, exclamou a sra. Vane, erguendo os olhos ao teto à procura de uma galeria imaginária.
“Vamos, Sibyl”, disse o irmão, impaciente. Ele odiava as afetações da mãe.
Saíram à luz tremulante, agitada pelo vento, e foram andando pela sombria Euston Road. Os transeuntes olhavam admirados para o jovem carrancudo e pesado que, com roupas grosseiras e mal ajustadas, fazia companhia a uma garota tão graciosa e de aparência tão refinada. Ele parecia um jardineiro comum andando com uma rosa.
Jim franzia o cenho de tempos em tempos quando surpreendia o olhar curioso de algum estranho. Tinha aquela aversão a ser fitado que surge nos gênios no fim da vida e nunca abandona os medíocres. Sibyl, porém, estava completamente alheia ao efeito que produzia. Seu amor tremia em risos sobre os lábios. Pensava no Príncipe Encantado e, para poder pensar ainda mais nele, não falava dele, mas tagarelava sobre o navio em que Jim ia embarcar, sobre o ouro que, com certeza, ele iria encontrar, sobre a maravilhosa herdeira cuja vida ele salvaria dos pérfidos salteadores de camisa vermelha. Pois ele não ficaria sendo marinheiro, ou contramestre de carga, ou o que quer que fosse. Ah, não! A vida de marinheiro era terrível. Imagine ficar entalado num navio horrível, com as ondas roucas, corcundas, tentando entrar, e um vento negro derrubando mastros e rasgando as velas em longas fitas gritantes! Ele deixaria o navio em Melbourne, daria um educado adeus ao capitão e partiria diretamente para os garimpos. Antes de passar uma semana toparia com uma grande pepita de ouro puro, a maior pepita já descoberta, e a levaria até a costa numa carroça guardada por seis policiais montados. Os salteadores do mato os atacariam três vezes e seriam derrotados com imensa mortandade. Ou, não. Ele não iria aos garimpos coisa nenhuma. Eram lugares horríveis, onde homens se embriagavam e davam tiros uns nos outros nos bares e falavam palavrões. Ele seria um bom fazendeiro de ovelhas, e certa noite, enquanto voltava para casa a cavalo, veria a bela herdeira sendo levada por um bandido num cavalo negro, e daria perseguição e a salvaria. É claro que ela se apaixonaria por ele, e ele por ela, e se casariam e voltariam para casa e morariam numa casa imensa em Londres. Sim, coisas deliciosas o esperavam. Mas ele tinha de ser muito bom e não perder a paciência, nem gastar dinheiro à toa. Ela era só um ano mais velha que ele, mas sabia muito mais da vida. Também tinha de lhe escrever em cada correio e de rezar todas as noites antes de dormir. Deus era muito bom e cuidaria dele. Ela também rezaria por ele e, em alguns anos, ele voltaria muito rico e feliz.
O rapaz ouviu carrancudo e nada respondeu. Estava enjoado de saudade antes mesmo de partir.
Mas não era só isso que o tornava sombrio e mal-humorado. Inexperiente como era, ainda assim tinha um forte senso do perigo da posição de Sibyl. Esse dândi jovem que lhe fazia a corte não podia ter boas intenções. Era um cavalheiro, e ele o odiava por isso, odiava-o por algum curioso instinto de raça para o qual não sabia dar conta e que, por essa mesma razão, era ainda mais dominante dentro dele. Estava consciente também da superficialidade e vaidade da natureza de sua mãe, e nisso via um perigo infinito para Sibyl e a felicidade de Sibyl. As crianças começam amando os pais; ao crescer, julgam-nos; às vezes perdoam.
Sua mãe! Havia algo que queria perguntar a ela, algo sobre o que ruminava havia muitos meses de silêncio. Uma frase casual que ouvira no teatro, um escárnio sussurrado que lhe chegara aos ouvidos certa noite, enquanto esperava na porta do palco, desencadeara uma cadeia de pensamentos horríveis. Lembrava-se disso como se fosse o estalo de um chicote de caça em seu rosto. As sobrancelhas se juntaram em um sulco pontudo e, num repuxo de dor, ele mordeu o lábio inferior.
“Você não está ouvindo uma palavra do que eu digo, Jim”, exclamou Sibyl, “e estou fazendo os planos mais deliciosos para o seu futuro. Diga alguma coisa.”
“O que você quer que eu diga?”
“Ah! que você vai ser um bom menino e não vai se esquecer de nós”, respondeu ela, sorrindo para ele.
Ele deu de ombros. “É mais provável que você se esqueça de mim do que eu me esquecer de você, Sibyl.”
Ela corou. “O que você quer dizer, Jim?”, perguntou.
“Você tem um novo amigo, pelo que ouvi. Quem é? Por que não me falou dele? Ele não te quer bem.”
“Pare, Jim!”, exclamou. “Você não deve dizer nada contra ele. Eu o amo.”
“Ora, você nem sabe o nome dele”, respondeu o rapaz. “Quem é? Tenho o direito de saber.”
“Ele se chama Príncipe Encantado. Você não gosta do nome? Ah! seu bobo! você nunca deveria esquecê-lo. Se você o visse, acharia que é a pessoa mais maravilhosa do mundo. Um dia você vai conhecê-lo — quando voltar da Austrália. Vai gostar tanto dele. Todo mundo gosta dele, e eu... eu o amo. Queria que você pudesse ir ao teatro hoje à noite. Ele vai estar lá, e eu vou interpretar Julieta. Ah! como eu vou representar! Imagine, Jim, estar apaixonada e representar Julieta! Tê-lo sentado lá! Representar para o deleite dele! Tenho medo de assustar a companhia, assustá-la ou enfeitiçá-la. Estar apaixonada é superar a si mesma. O pobre e terrível sr. Isaacs vai estar gritando ‘gênio’ para os seus desocupados no balcão. Ele me pregou como um dogma; esta noite vai me anunciar como uma revelação. Eu sinto isso. E é tudo dele, só dele, do Príncipe Encantado, meu amante maravilhoso, meu deus das graças. Mas eu sou pobre ao lado dele. Pobre? Que importa? Quando a pobreza entra pela porta, o amor voa pela janela. Nossos provérbios precisam ser reescritos. Foram feitos no inverno, e agora é verão; primavera para mim, acho, uma verdadeira dança de flores sob céus azuis.”
“Ele é um cavalheiro”, disse o rapaz, carrancudo.
“Um príncipe!”, cantou ela, musical. “Que mais você quer?”
“Ele quer te escravizar.”
“Eu estremeço só de pensar em ser livre.”
“Quero que você tome cuidado com ele.”
“Vê-lo é adorá-lo; conhecê-lo é confiar nele.”
“Sibyl, você está louca por ele.”
Ela riu e tomou o braço dele. “Meu querido Jim, você fala como se tivesse cem anos. Um dia você mesmo vai se apaixonar. Então vai saber como é. Não fique tão emburrado. Você devia ficar feliz em pensar que, embora esteja indo embora, me deixa mais feliz do que jamais estive. A vida tem sido dura para nós dois, terrivelmente dura e difícil. Mas agora será diferente. Você vai para um novo mundo, e eu encontrei um. Aqui há duas cadeiras; vamos sentar e ver o pessoal elegante passar.”
Sentaram-se em meio a uma multidão de observadores. Os canteiros de tulipas do outro lado da rua flamejavam como anéis palpitantes de fogo. Um pó branco — parecia uma nuvem trêmula de pó de íris — pendia no ar arfante. Os guarda-sóis coloridos dançavam e mergulhavam como borboletas monstruosas.
Ela fez o irmão falar de si, de suas esperanças, de suas perspectivas. Ele falava devagar e com esforço. Trocaram palavras como jogadores num jogo trocam fichas. Sibyl sentiu-se oprimida. Não conseguia comunicar sua alegria. Um leve sorriso encurvando aquela boca sombria era todo o eco que conseguia arrancar. Depois de algum tempo, calou-se. De repente, vislumbrou cabelos dourados e lábios risonhos e, numa carruagem aberta com duas damas, Dorian Gray passou conduzindo.
Ela saltou em pé. “Lá está ele!”, exclamou.
“Quem?”, disse Jim Vane.
“O Príncipe Encantado”, respondeu, olhando para a victoria.
Ele se levantou e agarrou-a rudemente pelo braço. “Mostra-o para mim. Qual é ele? Aponta. Preciso vê-lo!”, exclamou; mas naquele instante a sege de quatro cavalos do duque de Berwick passou entre eles e, quando o espaço ficou livre, a carruagem já havia sumido do parque.
“Ele se foi”, murmurou Sibyl tristemente. “Queria que você o tivesse visto.”
“Eu também queria, pois, tão certo como há um Deus no céu, se algum dia ele te fizer algum mal, eu o matarei.”
Ela o fitou, horrorizada. Ele repetiu as palavras. Cortaram o ar como uma adaga. As pessoas ao redor começaram a arregalar os olhos. Uma dama ali perto deu uma risadinha.
“Vamos embora, Jim; vamos”, sussurrou. Ele a seguiu obstinado enquanto ela atravessava a multidão. Sentia-se contente com o que dissera.
Quando chegaram à Estátua de Aquiles, ela se virou. Havia piedade em seus olhos, que virou riso nos lábios. Sacudiu a cabeça para ele. “Você é tolo, Jim, totalmente tolo; um garoto de mau gênio, só isso. Como pode dizer coisas tão horríveis? Você não sabe do que está falando. É pura inveja e maldade. Ah! queria que você se apaixonasse. O amor torna as pessoas boas, e o que você disse foi maldoso.”
“Tenho dezesseis anos”, respondeu, “e sei muito bem o que faço. Mamãe não te ajuda em nada. Ela não sabe cuidar de você. Queria agora não estar indo para a Austrália de jeito nenhum. Estou com grande vontade de largar tudo. Largaria, se meu contrato de aprendizagem não estivesse assinado.”
“Ah, não seja tão sério, Jim. Você parece um dos heróis daqueles melodramas bobos que a mamãe gostava tanto de representar. Não vou brigar com você. Eu o vi e, oh! vê-lo é felicidade pura. Não vamos brigar. Eu sei que você nunca faria mal a alguém que eu amo, faria?”
“Não enquanto você o amar, suponho”, foi a resposta carrancuda.
“Vou amá-lo para sempre!”, exclamou ela.
“E ele?”
“Para sempre, também!”
“É bom que seja.”
Ela se encolheu dele. Depois riu e pousou a mão no braço dele. Ele era apenas um garoto.
No Marble Arch, chamaram um ônibus, que os deixou perto do lar modesto deles na Euston Road. Já passava das cinco, e Sibyl precisava se deitar por algumas horas antes de representar. Jim insistiu que ela o fizesse. Disse que preferia se despedir quando a mãe não estivesse presente. Ela certamente faria uma cena, e ele detestava qualquer tipo de cena.
No quarto de Sibyl, despediram-se. Havia ciúme no coração do rapaz e um ódio feroz, assassino, ao estranho que, pelo que lhe parecia, se interpusera entre eles. Ainda assim, quando os braços dela se enlaçaram em seu pescoço e os dedos dela passearam por seus cabelos, ele amoleceu e a beijou com verdadeira afeição. Tinha lágrimas nos olhos ao descer as escadas.
A mãe o esperava lá embaixo. Resmungou sobre a impontualidade, quando ele entrou. Ele não respondeu, mas sentou-se diante da refeição frugal. Moscas zumbiam ao redor da mesa e rastejavam sobre a toalha manchada. Por entre o ronco dos ônibus e o tropel dos tílburis, ele ouvia a voz monótona do relógio devorando cada minuto que lhe restava.
Depois de algum tempo, empurrou o prato para longe e apoiou a cabeça nas mãos. Sentia que tinha o direito de saber. Já deveria ter sido dito a ele antes, se fosse como suspeitava. Pesada de medo, a mãe o observava. Palavras caíam mecanicamente de seus lábios. Um lenço de renda puído tremelicava entre os dedos. Quando o relógio bateu seis, ele se levantou e foi até a porta. Então voltou e a olhou. Seus olhos se encontraram. Nos dela, ele viu um apelo selvagem por misericórdia. Isso o enfureceu.
“Mamãe, tenho algo a te perguntar”, disse. Os olhos dela vaguearam pelo cômodo, sem foco. Não respondeu. “Diga a verdade. Tenho o direito de saber. Você era casada com meu pai?”
Ela soltou um suspiro profundo. Foi um suspiro de alívio. O momento terrível, o momento que, noite e dia, por semanas e meses, ela temera, chegara enfim, e ainda assim não sentiu pavor. Na verdade, em certa medida, foi uma decepção. A rude franqueza da pergunta exigia uma resposta direta. A situação não fora preparada gradualmente. Era crua. Lembrava um ensaio malfeito.
“Não”, respondeu, surpresa com a dura simplicidade da vida.
“Então meu pai foi um canalha!”, gritou o rapaz, cerrando os punhos.
Ela sacudiu a cabeça. “Eu sabia que ele não era livre. Nós nos amávamos muito. Se tivesse vivido, teria providenciado por nós. Não fale contra ele, meu filho. Ele era seu pai, e um cavalheiro. De fato, era de altas relações.”
Um palavrão escapou dos lábios dele. “Não me importo comigo”, exclamou, “mas não deixe que a Sibyl... É um cavalheiro, não é, esse que está apaixonado por ela, ou diz que está? Altas relações também, suponho.”
Por um instante, um hediondo senso de humilhação dominou a mulher. A cabeça tombou. Enxugou os olhos com as mãos trêmulas. “Sibyl tem mãe”, murmurou; “eu não tive.”
O rapaz se comoveu. Aproximou-se dela e, inclinando-se, beijou-a. “Sinto se te magoei perguntando do meu pai”, disse, “mas não pude evitar. Tenho de ir agora. Adeus. Não esqueça que agora terá só uma filha para cuidar, e acredite em mim: se esse homem fizer mal à minha irmã, vou descobrir quem ele é, persegui-lo e matá-lo como a um cão. Eu juro.”
A insensatez exagerada da ameaça, o gesto apaixonado que a acompanhou, as palavras loucas e melodramáticas, fizeram a vida parecer mais vívida para ela. Estava familiarizada com essa atmosfera. Respirou mais à vontade e, pela primeira vez em muitos meses, admirou de verdade o filho. Teria gostado de continuar a cena no mesmo diapasão emocional, mas ele a interrompeu. Baús tinham de ser carregados e cachecóis, procurados. A criada da pensão ia e vinha atarefada. Havia a pechincha com o cocheiro. O momento se perdeu em detalhes vulgares. Foi com renovado sentimento de desapontamento que ela acenou com o lenço de renda puído da janela, quando o filho partiu. Tinha consciência de que uma grande oportunidade fora desperdiçada. Consolou-se contando a Sibyl como se sentia desolada por sua vida ser, agora, cuidar de apenas um filho. Lembrou-se da frase. Ela a agradara. Da ameaça, nada disse. Fora vívida e dramaticamente expressa. Sentia que algum dia todos ririam dela.
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