Primeiro caderno de Kindzu - O TEMPO EM QUE O MUNDO TINHA A NOSSA IDADE
Kindzu narra sua vida desde a sua infância. Seu nome é o mesmo dado às palmeiras com as quais seu pai, Taímo, fazia aguardente. Pescador solitário, não tinha qualquer ambição e, pelo contrário, orgulhava-se de viver com pouco. Taímo ainda era sonâmbulo e acreditava que seus sonhos eram verdades reveladas a ele, às quais compartilhava com sua família, que não podia duvidar de suas palavras.
Kindzu lembra-se do dia em que seu pai, todo arrumado, anunciou com orgulho que o país havia conquistado a independência. Em homenagem o seu próximo filho se chamaria Vinticinco de Junho – acabou recebendo o nome de Junho, ou Junhito apenas.
Tempos depois veio a guerra, primeiro na forma de notícias distantes, depois em tiroteios cada vez mais próximos. A mãe de Kindzu já não podia cultivar a terra em nenhum lugar, a família tornava-se cada vez mais miserável. Taímo acreditava que a pobreza era a melhor forma de defender-se contra os roubos.
Em um de seus delírios, o pai de Kindzu declarou que alguém da família iria morrer: seria o filho mais novo, o Junhito. Para defendê-lo ordenou que o menino fosse morar junto às galinhas, coberto de penas e imitando seu cantos. Isolado dos humanos, Junhito já nem sabia mais falar, até que desapareceu misteriosamente: os vizinhos diziam que Taímo, bêbado, o havia confundido com uma galinha torceu seu pescoço; outros acreditavam que ele havia sido roubado junto a outras aves; Kindzu suspeita que sua própria mão possa tê-lo libertado às escondidas.
O sumiço de Junhito transtornou ainda mais a família de Kindzu: seu pai passava o tempo todo embriagado, deitado em seu barco em meio às dunas. Certo dia encontraram seu corpo com uma espuma vermelha borbulhando pela boca, nariz e ouvidos. O defunto foi lançado ao mar.
A mãe de Kindzu consultou um feiticeiro para saber mais sobre a morte de Taímo e foi orientada a construir uma casa e que guardasse lá dentro o barco de seu finado marido, que poderia retornar da morte. Além disso, todas as noites ela preparava uma panela de comida que Kindzu levava ao local. No dia seguinte a panela estava sempre vazia.
Um dia Kindzu viu um homem vestindo roupas vermelhas e pulseiras de feitiços entrar na casa após ele servir a comida. Ao avisar sua mãe sobre a aparição do estranho, ela disse que se tratava de seu pai. Kindzu não acreditava nessa história, mas não podia contrariá-la: solitária, a mulher ainda reclamava que ele era o único filho que havia lhe sobrado a esta altura, o pior de todos.
A guerra esvaziava as vilas da região, casas ficavam destruídas e o mato tomava conta das construções. Somente um comerciante permanecera no local Surendra Valá, um indiano que sofria perseguição devido a sua raça. Kindzu, entretanto, tinha amizade com o homem, passando todos os dias em seu estabelecimento – e isso preocupava a sua família, com medo que ele se afastasse de sua cultura. Surendra brincava que eles eram de uma mesma raça, a raça dos índicos, já que suas terras compartilhavam do mesmo oceano.
Certa vez o indiano discutia com um freguês que tentava roubar seu estabelecimento quando entrou um homem com roupas vermelhas, igual ao que Kindzu havia visto entrar na casa de seu pai. O ladrão saiu do local o homem pediu a Surendra alguns panos. Depois o comerciante explicou a Kindzu que aquele era um naparama, um guerreiro abençoado por feitiços que o protegiam das balas.
Uma noite o comércio de Surendra foi invadido e incendiado, Kindzu foi o único a consolar o indiano, que decidiu sair daquela região. Ele dizia que não gostava de pretos, nem de branco, nem mesmo de indianos: ele gostava de pessoas que não tinham raça, como Kindzu.
O garoto também tinha vontade de fugir daquele lugar e procurou o pastor Afonso, seu antigo professor, para ter alguma orientação. Chegando em sua casa, encontrou todos em luto: ele havia sido assassinado e suas mãos foram cortadas e penduradas na mesma árvore sob a qual ele insistia em dar aulas, mesmo após sua escola ter sido queimada.
Desesperado por estes acontecimentos, Kindzu decidiu que queria tornar-se também um naparama. Uma parte dele, no entanto, desejava encontrar um canto sossegado para viver. De qualquer forma, ele não deveria continuar vivendo ali.
Durante um sonho Kindzu recebeu a visita de seu pai, que ameaçava persegui-lo caso deixasse sua terra. Atormentado por esta visão, o menino procurou os velhos da aldeia e perguntou-lhes sobre como tornar-se um guerreiro: eles o orientaram a não se envolver com a guerra e, além disso, os naparamas eram competência dos feiticeiros do norte. Já sobre um lugar tranquilo em que Kindzu pudesse viver, sugeriram que ele procurasse nganga, o adivinho do local.
Kindzu procurou o tal homem, que lhe contou que o seu sonhado refúgio era muito distante e que havia duas formas de partir: indo embora, ou enlouquecendo, como seu pai havia feito. Em sua viagem o nganga aconselhou que seguisse pelo mar, depois andasse pela areia que não guardava pegadas, para despistar o espírito de Taímo, até encontrar o lugar onde ninguém o conhecesse.
Ao despedir-se de sua mãe, ela mal falou. Delirava que estava grávida.