PARTE UM: A REVOLUÇÃO COGNITIVA
Capítulo 2
A ÁRVORE DO CONHECIMENTO
Numa primeira tentativa de ir além da África Oriental, há 100 mil anos, ocupando a região do Levante, os sapiens teriam levado a pior contra os neandertais. Acredita-se que esses agrupamentos ainda possuíam um cérebro não tão desenvolvido quanto o daqueles que, 30 mil anos depois, conseguiriam ocupar não só o Oriente Médio, como também todo o planeta, extinguindo as demais espécies humanas.
Fato é que entre 70 e 30 mil anos atrás os sapiens passaram por uma revolução cognitiva que os capacitou a utilizarem embarcações e instrumentos refinados, estendendo seus domínios até a Austrália. São dessa época os primeiros artefatos artísticos e ornamentais que dão indícios de práticas religiosas, comerciais e de segmentação social.
Acredita-se que os sapiens dessa "segunda diáspora" já compartilhavam do nosso cérebro contemporâneo, que teria ganhado complexidade, segundo a teoria mais aceita, devido a um conjunto de alterações genéticas - que autor sugere chamar de "mutações da árvore do conhecimento".
É desse período também, exclusivamente aos sapiens, o surgimento da linguagem enquanto estrutura complexa, que de um conjunto finito de sons se torna capaz de gerar uma infinidade de significados. Essa habilidade teria sido uma grande vantagem para se planejar o trabalho em grupo, diante de tarefas mundanas, mas também teria alimentado um fenômeno marcante de nossa natureza: a fofoca.
Ainda que possa soar engraçado, a possibilidade de trocar informações sobre quais outros membros do bando são parceiros, confiáveis ou inimigos foi o que tornou possível a cooperação humana mais coesa. Até os dias atuais boa parte da comunicação e do noticiário gira em torno de fofocas, quase sempre mirando comportamentos inadequados.
Mas, mais do que trocar informações sobre o mundo e sobre seus pares, talvez a mais extraordinária habilidade dos sapiens foi a de conseguirem se comunicar sobre entidades que não existem no mundo real: lendas, mitos, deuses, religiões e mesmo os estados modernos são ficções, criações da cultura linguística humana, que nos capacitam a agir coletivamente quando unidos em nome dessas crenças.
A LENDA DA PEUGEOT
Em grupos de algumas dezenas, os chimpanzés costumam viver sob uma estrutura hierárquica em que um macho alfa busca manter a harmonia do bando. Se o grupo cresce demais eventualmente outro macho poderá disputar a posição de alfa, muitas vezes levando à ruptura da comunidade - poucos bandos chegam a ultrapassar os 100 indivíduos. Imagina-se que padrões semelhantes ocorriam com os primeiros humanos.
A Revolução Cognitiva de 70 mil anos atrás teria proporcionado, através da linguagem, a formação de agrupamentos coesos de até 150 indivíduos - número estimado por sociólogos para o alcance máximo "natural" da fofoca cotidiana de um sapiens. A partir desse limite se torna mais difícil haver um controle direto, seja de um agrupamento militar ou de uma empresa familiar, sendo necessário que se criem estruturas institucionais que cumpram esse papel homogeneizante - que seriam as tais ficções.
O grande poder desses mitos compartilhados, ressalta o autor, seria o estabelecimento de uma ordem social mais estável, previsível e de longo alcance, que nos sustenta até hoje: é o fato de partilharmos nacionalidades, línguas e moedas que nos permite interagir e colaborar, mesmo com completos estranhos, ao redor do globo.
As instituições modernas, como as corporações, funcionariam portanto numa base muito semelhante à das primeiras crenças tribais humanas: executivos e advogados nada mais seriam que xamãs atualizados. Para exemplificar a ideia, Harari discorre sobre a lenda da Peugeot.
Na caverna de Stadel, na Alemanha, foi encontrada uma estátua em marfim com mais de 30 mil anos que talvez seja a primeira prova de que humanos imaginavam coisas irreais: um "homem-leão", muito semelhante ao ícone que os carros da Peugeot ostentam pelo mundo.
A Peugeot foi fundada em 1896, no vilarejo de Valentigney, a 300 quilômetros da caverna de Stadel, pelo francês Armand Peugeot, que havia herdado uma oficina familiar e decidiu investir na fabricação de carros. Ainda que seu fundador tenha morrido em 1915, a Peugeot continua empregando mais de 200 mil pessoas, fabricando milhões de automóveis e gerando bilhões de euros em receita anualmente.
O segredo para que uma entidade, dissociada de seu criador, continue existindo e envolvendo tantos indivíduos em nossa atualidade, argumenta Harari, é a sua existência na nossa imaginação coletiva, através daquilo que os advogados chamam de "ficção jurídica". Trata-se da figura de um "empresa de responsabilidade limitada", uma ficção criada para reduzir os riscos ao empreendedor. Ao fundar a Peugeot, Armand acionou os "poderes mágicos" de advogados e burocratas que através de procedimentos "sagrados" deram "vida própria" à fábrica.
A ideia de que vivemos baseados em "ficções", em "construções sociais" ou "realidades imaginadas" não significa, porém, que estejamos sendo iludidos por mentiras. Trata-se de ideias que, mesmo imaginadas, têm efeitos práticos e reais no mundo.
Em suma, a Revolução Cognitiva fez com que os sapiens passassem a compartilhar duas realidades: uma objetiva, do mundo real e seus fenômenos, e outra fictícia, baseada em imaginações compartilhadas.
SUPERANDO O GENOMA
Além de possibilitar uma cooperação maior e mais eficaz entre humanos, os mitos compartilhados trouxeram também o potencial de mudança e evolução cultural num ritmo muito mais acelerado do que a evolução biológica permitia.
Se as pessoas se comportavam de acordo com as histórias que eram contadas, bastaria alterar as histórias e surgiriam novos comportamentos: foi isso que fez o povo francês em 1789, ao deixar de acreditar no mito dos reis e passar a acreditar no mito da soberania do povo.
A partir da Revolução Cognitiva muitos comportamentos puderam ser passados por gerações, mesmo sem quaisquer mutações genéticas que os acompanhassem. Por exemplo, o hábito comum de diversas sociedades em possuírem uma elite celibatária, como os padres católicos, ou os monges budistas, seria contraintuitivo na perspectiva da seleção natural, mas mantém-se por conta da transmissão das tradições entre os humanos.
Ou seja, enquanto os primeiros humanos demoravam dezenas de milhares de anos para ganharem alterações significativas em seus hábitos, os sapiens passaram a manipular suas estruturas sociais no intervalo de décadas.
Harari apresenta um exemplo interessante: uma mulher centenária nascida em 1900, na cidade de Berlim, teria vivido o Império de Guilherme II, a República de Weimar, o regime nazista e a Alemanha comunista, morrendo, enfim numa democracia. Sem alterar nenhum gene de seu DNA.
Comparado diretamente a um neandertal, um sapiens era mais fraco. Mas unidos pela crença compartilhada em entidades fictícias, os sapiens se tornaram capazes de dominar o globo.
Uma diferença fundamental entre os vestígios fósseis de neandertais quando comparados aos sítios dos sapiens está na ausência, entre os primeiros, de objetos originados de longas distâncias, enquanto bandos de sapiens pareciam sempre carregar artefatos que só poderiam chegar até eles de uma forma única: através do escambo, da troca.
Presentes somente entre os sapiens, as redes de comércio ocorreram sempre baseando-se em alguma ficção que gere confiança mútua: seja um deus comum, um ancestral mítico, ou uma nota de dólar.
Nossa habilidade linguística também deve ter sido responsável pela rápida disseminação de técnicas de caça, além da possibilidade da cooperação em grande número para tanto, o que mais uma vez nos colocou na dianteira das outras espécies humanas.
O QUE ACONTECEU NA REVOLUÇÃO COGNITIVA?
Resumindo, a linguagem possibilitou uma melhor comunicação sobre o mundo exterior, que levou ao planejamento e a realização de ações complexas; ao mesmo tempo a comunicação tinha função de fofoca, que permitia agrupamentos sociais maiores e mais estáveis; por fim, nossa habilidade de falar sobre e acreditar em entidades imaginárias abriu caminho para a cooperação entre indivíduos desconhecidos, além de trazer uma maior maleabilidade comportamental aos humanos.
HISTÓRIA E BIOLOGIA
Essa diversidade de realidades imaginadas pelos humanos e seus comportamentos resultantes são os elementos fundamentais do que se considera "cultura". Desde que surgiram, as culturas mantêm um padrão de transformação e desenvolvimento cujo registro chamamos "história".
A Revolução Cognitiva seria, portanto, o momento em que a história se torna independente da biologia. A partir daí a compreensão de grandes acontecimentos da humanidade envolve a consideração dos elementos imaginários enquanto motivadores dos comportamentos, especialmente quando tratamos de movimentos coletivos.
É inegável que base biológica da existência dos sapiens continua estabelecendo os parâmetros básicos de nossos comportamentos, traçando limites dentro dos quais a história se desenrola. Porém também é visível que temos uma imensa capacidade de criar ficções cada vez mais complexas, e que somente a análise da evolução histórica dessas ficções pode nos ajudar a entender nosso comportamento.
O próximo capítulo irá examinar como se dava a vida dos sapiens durante os milênios entre a Revolução Cognitiva e a Revolução Agrícola.