O burrinho pedrês
Na fazenda do Major Saulo vivia um burrinho pedrês, já muito velho e bem vivido. Chamava-se Sete-de-Ouros. Sua história de vida poderia ser resumida nos fatos de um só dia, que será contado adiante.
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Era uma manhã chuvosa de um dia de janeiro na fazenda do Major Saulo, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. O burrinho, sereno e sábio, observava o movimento dos bois nos currais, que iam para lá e para cá disputando espaço. Ele se cansa de assistir a bagunça e fecha os olhos, mas logo é incomodado por um cavalo que vem tomar seu lugar, além de outros que começam a brigar. Sete-de-Ouros encontra um canto, perto da varanda, onde pode ficar sossegado, mas logo é avistado pelo Major, que ordena Francolim, seu assistente, que o arreie. Francolim debocha da situação do velho burrinho, mas seu patrão o defende.
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Major Saulo preocupa-se com a chuva, que poderia atrapalhar o transporte da boiada, mas confia em seus homens. Há, entretanto, o comentário que dois dos vaqueiros, Silvino e Badú, estejam brigados por conta de o segundo ter ficado com a moça que era namorada do primeiro. Enquanto falam sobre isso, Badú tenta montar em seu cavalo, mas o animal se comporta agressivamente. Francolim conta a seu patrão que vira Silvino assoviando no ouvido do cavalo, o que o teria irritado, e sugere uma punição imediata. Porém o Major prefere acompanhar o caso a uma certa distância, sem tomar atitudes precipitadas.
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Sete-de-Ouros é montado por João Manico, que era o mais leve entre os cavaleiros. Juca Bananeira, conversando com Badú, sugere que ele carregue uma arma para defender-se de Silvino, mas Badú duvida da coragem de seu inimigo para atentar contra sua vida. Os bois se agitam, sentindo que chega a hora da partida. Alguns animais, de acordo com o estado físico, são trocados de última hora. Mas a maioria deles são bem gordos e preguiçosos, e não devem dar trabalho aos boiadeiros. Ao todo, são quatrocentos e sessenta bois levados por onze homens e seus cavalos, e o burro.
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A boiada ia se organizando conforme marchava. Os boiadeiros seguiam trocando histórias, enquanto cuidavam para que os animais continuassem tranquilos. Raymundão conta a Badú sobre o Calundú, um boi zebu que conhecera, enorme e valente. Quando jovem ele era manso, até que se estranhou com outro zebu, numa luta que durou duas horas e da qual saiu vitorioso. Certa noite Raymundão ouviu sua cachorra estranhando algo no mato e foi ver o que era. As vacas começaram a se ajuntar em círculo, com as crias ao meio, e o Calundú rodando em volta: uma onça estava à espreita. O boi zebu postou-se em defesa dos seus semelhantes, com muita coragem e braveza, tanta que a onça deu para trás.
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A chuva apertava e o córrego, que costumava ser de fácil travessia, estava cheio. Bois e cavalos passaram com a água no pescoço. O burrinho, que era desacreditado por muitos, seguiu firme, devagar e sempre.
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Major Saulo e João Manico iam lado-a-lado, proseando, quando veem à frente um cavaleiro enfrentando um touro e se salvando por pouco: era Badú. Francolim correu ao seu patrão para contar que tudo fora armado por Silvino, que agitou os bois com um pano vermelho. O Major pede que seu assistente troque de montaria com Manico, subindo no burrico. Francolim pede somente que a troca seja desfeita ao chegarem no arraial, pois não queria parecer desmoralizado pelo povo do local e Saulo concorda.
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Desacreditando que Silvino pudesse assassinar seu companheiro de trabalho, o Major pediu que Francolim, montado no burro, seguisse mais atrás enquanto ele conversava com Raymundão. O boiadeiro compartilhou com seu chefe sobre a primeira vez em que topou com um boi bravo e como o amansou. Em seguida, sobre a briga dos seus companheiros, revelou que Silvino estava se preparando para deixar aquelas bandas: tinha vendido suas vacas e voltaria para suas antigas terras. Raymundão ainda contou a conversa que travou com Badú, sobre o boi Calundú.
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Aquele boi, noutra ocasião, matou um garoto que gostava muito dele, Vadico, filho do Borges. O menino nem queria ir para a escola, de tanto que gostava dos animais. Porém um dia, quando os bichos eram alimentados, o Calundú, que geralmente aceitava o carinho do Vadico, acertou-lhe um golpe mortal. Seu Borges preparou a arma para revidar o ataque, mas o último pedido da criança foi que não maltratassem o bicho. Naquela noite o boi ficou mugindo alto, como de tristeza pelo seu ato.
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Ainda sobre Silvino, Raymundão contou que ele se estranhara com seu irmão, Tote, que estava lhe devendo um dinheiro. Sabendo disso, o Major dispensou seu funcionário e chamou de volta Francolim, desfazendo troca de montaria do burro com Manico. O Major incumbiu seu companheiro de cuidar do resto da viagem, pois ele permaneceria no arraial com sua família, e alertou que Silvino realmente estava prestes a matar Badú, portanto era preciso ter cuidado.
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A boiada passando pelo arraial em direção ao embarque nos trens era um evento que chamava a atenção de todos os moradores. Realizado o trabalho, todos cavaleiros saíram para comer e beber, deixando os cavalos e o burro descansando.
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Quando voltaram, os homens foram tomando seus animais, um a um, deixando o Sete-de-Ouros sozinho. Surgiu Badú, totalmente bêbado, maldizendo seu destino de montar um burrico velho. O burro, por sua vez, só queria saber de voltar logo à sua casa, à sua tranquilidade de sempre.
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À frente, Tote tentava convencer Silvino de não colocar em prática seu plano assassino, mas ele tinha tudo em mente: mataria Badú e sumiria na vida. Francolim se aproximou, argumentando que estava incumbido pelo Major de cuidar do grupo, mas foi desprezado.
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Manico ainda contou uma outra história, de quando Major Saulo ainda era Saulinho, e todos os gados da região estavam fracos ou doentes. Seu chefe comprou um rebanho por um preço justo e fez um favor para a dono da fazenda de levar um negrinho, de uns sete anos, para seu irmão. O menino chorava por se distanciar de sua mãe e, durante a noite, cantava tristemente. Ao amanhecer sumiram todos os animais, que pisotearam dois dos boiadeiros, e não havia nenhum sinal do pretinho. Levaram uma semana para rejuntar os animais que haviam se embrenhado em matos e brejos.
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Chegou a hora de atravessar novamente o córrego. Os cavalos demonstravam medo e deixaram o burro decidir se era possível ou não a passagem. Sete-de-Ouros seguiu o caminho, carregando o Badú embriagado em seu lombo. Confiando no instinto do burrico, os demais cavaleiros entraram na água, porém a correnteza era demais. Diversos animais eram levados por redemoinhos e os corpos foram encontrados inchados por afogamento. Francolim conseguiu se salvar agarrando-se à única coisa que se movia contra a corrente: o rabo do burrinho pedrês, que trazia Badú ainda vivo até a outra margem.
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Sete-de-Ouros ainda caminhou até a fazenda onde encontrou seu canto, sua comida e seu descanso tão esperados.
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