Capítulo 3
Atravessando a Praça do Comércio, acompanhado por Diogo e Manuel, Raimundo era alvo da curiosidade do povo da região. A boa aparência do rapaz, que herdara do pai os olhos azuis, chamava a atenção dos portugueses e comerciantes, aos quais logo foi apresentado por seu tio. Chegando à sua casa, Manuel colocou-se a disposição do sobrinho com muita cortesia e o viajante quis descansar em seu novo quarto.
Carregado de experiências de estudo e viagens estrangeiras, faltava a Raimundo o conhecimento de suas origens. Sabia que o pai morrera antes de ser mandado a Portugal, mas quanto à mãe, não sabia nem o nome. O retorno à sua província poderia solucionar estes mistérios, mas talvez não houvesse muito que fazer por lá: queria liquidar os negócios e se estabelecer na capital, o Rio de Janeiro, onde pretendia ter um escritório e casar-se.
A história de Raimundo, no entanto, era conhecida por muitos no Maranhão. Seu pai, José da Silva, trabalhava com o contrabando de africanos e fugiu do Pará, onde era malquisto, acompanhado de Domingas, uma de suas escravas mais jovens. Vivendo numa fazenda no Maranhão, Domingas deu à luz ao filho de José, batizado Raimundo.
Após prosperar nos negócios José da Silva casou-se com uma brasileira viúva, D. Quitéria Inocência, muito religiosa e cruel com os escravos. Quando a mulher percebeu os cuidados extremados com que José tratava Domingas e seu filho, ordenou que o pequeno fosse mandado embora daquelas terras e torturou a escrava com queimaduras pelo corpo. O marido censurou a esposa e levou Raimundo para viver com seu irmão, Manuel, onde estaria seguro, sob a orientação de ser encaminhado aos estudos em Portugal, quando estivesse na devida idade.
Retornando à sua casa José flagrou Quitéria dividindo o quarto com Diogo, jovem padre da região. Furioso, o homem traído estrangulou a esposa até a morte. O padre propôs um acordo de sigilo mútuo e a morte de Quitéria foi associada a uma possessão demoníaca. José deixou a fazenda nas mãos de Domingas e retornou a São Luís, de onde planejava partir para Portugal.
A estadia de José da Silva na casa de seu irmão foi conturbada: as lembranças do evento trágico ainda o perturbavam e uma forte febre o manteve na cama, convalescente. O doente recebia frequentes visitas do padre Diogo, que logo se afeiçoou à família e foi convidado a apadrinhar Ana Rosa, recém-nascida. O pequeno Raimundo, que vivia sob a proteção de sua tia, recebeu nesta época um único abraço de seu pai, que se dizia prestes a morrer.
Repentinamente José se recuperou e decidiu retornar à sua fazenda. Andando a cavalo, sozinho, o homem já sentia saudades daquela terra e se indagava se realmente deveria partir. A lembrança da traição de Quitéria ainda o incomodava: deveria ter matado o padre, não ela; pensou em se vingar de Diogo. José já se aproximava da fazenda quando um tiro acertou seu peito. Domingas encontrou o corpo do homem e concluiu que aquilo fora obra do padre.
Sabendo da morte do irmão, Manuel cuidou da herança de Raimundo e o enviou a Portugal para os estudos. O menino embarcou com muita tristeza e incomodou-se muito nos primeiros tempos em terras lusitanas, onde era molestado por outros meninos, por conta de seu cabelo crespo. Com o tempo fez amigos, entrou na universidade de Coimbra e destacou-se em vários grupos: compôs sátiras, participou de agitações políticas, escreveu para jornais. As lembranças da infância já eram um passado distante e não muito claro para ele, o que às vezes o perturbava: ao receber a notícia da morte de Mariana, Raimundo chorou pela perda da mãe adotiva, única ligação que possuía com sua pátria.
Terminados os estudos, com muitos méritos, Raimundo resolveu empenhar algum tempo em viagens pelo mundo antes de retornar a seu país. Chegando ao Rio de Janeiro, com grande desenvoltura social, decidiu que ali seria sua morada. Antes disso, resolveu visitar o Maranhão para conhecer o norte do país, liquidar seus negócios e, talvez, saber mais sobre sua família.